
O Programa Mais Médicos, lançado em 2013 com a proposta de democratizar o acesso à saúde em regiões remotas do Brasil, alcançou um marco histórico. Segundo informações divulgadas pela repórter Daniella Almeida, da Agência Brasil, o programa bateu recorde de inscrições com 45.792 médicos cadastrados na última chamada pública, encerrada no dia 8 de maio de 2025. Este número não apenas representa um recorde absoluto desde sua fundação, como também evidencia uma nova configuração no perfil e no interesse dos profissionais pela atenção primária em território nacional.
Dos inscritos, 93% são brasileiros, o que corresponde a 42.383 profissionais. Dentre eles, 25.594 médicos possuem registro profissional no Brasil, enquanto 16.789 são formados no exterior — o que inclui brasileiros graduados fora do país. Adicionalmente, 3.309 profissionais são estrangeiros habilitados para o exercício da medicina em solo brasileiro. A participação massiva de brasileiros revela uma adesão crescente à política pública voltada à medicina de família, que durante muito tempo foi negligenciada por parte da comunidade médica nacional, sendo preenchida por profissionais estrangeiros, especialmente cubanos, durante os primeiros ciclos do programa.
Outro dado que chama a atenção e merece análise sociológica é o expressivo número de mulheres inscritas: 26.864 profissionais, o que representa aproximadamente 58% do total. Tal protagonismo feminino reforça um fenômeno demográfico já detectado em faculdades de medicina e concursos públicos, em que a presença das mulheres na medicina brasileira tem superado de forma consistente a dos homens, promovendo uma redefinição não apenas estatística, mas também cultural e sensível do atendimento prestado à população.
Ainda que o volume de inscritos seja extraordinário, o número de vagas ofertadas no edital é de 3.064, distribuídas entre 1.620 municípios brasileiros e 108 vagas destinadas a 26 distritos sanitários especiais indígenas (Dseis). A discrepância entre demanda e oferta sugere, por um lado, o sucesso da política pública em atrair o interesse de profissionais para áreas anteriormente rejeitadas; por outro, desafia o Ministério da Saúde a expandir rapidamente as vagas de forma proporcional ao interesse gerado, respeitando critérios de qualidade, necessidade e infraestrutura mínima para a recepção adequada desses profissionais.
As atividades dos médicos selecionados com registro profissional no Brasil, assim como os intercambistas brasileiros ou estrangeiros que já passaram pelas etapas de acolhimento e avaliação, estão previstas para iniciar entre os dias 2 e 10 de julho de 2025. Essas etapas prévias de acolhimento e avaliação são fundamentais para garantir que os profissionais, especialmente os formados no exterior, estejam capacitados e devidamente alinhados com o modelo de saúde pública brasileiro, fundamentado na atenção primária e na lógica do Sistema Único de Saúde (SUS).
Desde sua retomada e ampliação em 2023, o programa vem sendo estruturado com a meta de alcançar 28 mil profissionais em atuação até o final de 2025, cobrindo 4.547 municípios brasileiros. Atualmente, o Mais Médicos conta com cerca de 24,9 mil médicos em atividade em 4,2 mil cidades, o que cobre 77% do território nacional. Essa expansão é estratégica para consolidar o papel da atenção primária como porta de entrada, resolutiva e coordenadora da rede de cuidados em saúde no Brasil, conforme preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelos princípios fundantes do SUS.
A presença do médico em áreas vulneráveis não se resume a um gesto de oferta de serviços básicos. Trata-se da consolidação de um vínculo entre o Estado brasileiro e populações historicamente negligenciadas — indígenas, ribeirinhos, moradores de zonas rurais isoladas, comunidades periféricas urbanas — que passam a ter o direito efetivo de contar com acompanhamento clínico contínuo e com orientação preventiva sobre saúde. Em última instância, é a concretização do artigo 196 da Constituição Federal, que afirma ser a saúde um direito de todos e dever do Estado.
No cotidiano das ações do Mais Médicos, os profissionais se integram às equipes de Saúde da Família, exercendo papel central na condução dos atendimentos, encaminhamentos para especialistas e monitoramento contínuo da condição de saúde de cada paciente. O uso do Prontuário Eletrônico (e-SUS APS) é uma inovação estrutural que permite a integração e rastreabilidade de dados clínicos entre as unidades básicas de saúde e os serviços especializados, fortalecendo a continuidade do cuidado, evitando redundâncias e promovendo uma gestão mais eficaz do sistema.
Não se trata de mera reposição de mão de obra, mas de um modelo de atuação que propõe a permanência dos médicos nas comunidades, a escuta ativa, o respeito à cultura local e a construção de confiança com os cidadãos. Esse formato rompe com a lógica hospitalocêntrica e promove uma abordagem centrada no território, o que se reflete, entre outros efeitos, na redução de internações evitáveis, no controle mais eficaz de doenças crônicas e na ampliação do acesso a métodos contraceptivos, imunização e rastreio de cânceres.
A motivação por trás do recorde de inscrições pode estar relacionada a diversos fatores. Entre eles, destacam-se a instabilidade do mercado de trabalho médico nos grandes centros urbanos, o aumento da oferta de cursos de medicina no país — nem sempre acompanhada pela respectiva expansão do mercado privado — e o crescente interesse de jovens médicos em iniciar a carreira com alguma forma de estabilidade e renda garantida. O Mais Médicos, nesse sentido, tem oferecido uma alternativa atrativa, com bolsa-formação, auxílio-moradia e condições de trabalho dignas, além da possibilidade de pontuação em processos seletivos de residência médica.
É importante lembrar que o programa já enfrentou sérias críticas em anos anteriores, especialmente no que diz respeito à revalidação dos diplomas de médicos estrangeiros e à fiscalização da atuação profissional em localidades distantes dos grandes centros. Com o passar do tempo e com as adaptações promovidas desde sua retomada em 2023, o Mais Médicos avançou em mecanismos de controle de qualidade, transparência e avaliação de desempenho. O atual ciclo de adesão pode, portanto, ser interpretado também como um voto de confiança da classe médica nas melhorias institucionais do programa.
A cooperação entre governo federal, estados e municípios é outro pilar imprescindível para o sucesso do projeto. A definição de prioridades, a logística de transporte e alojamento, a disponibilidade de insumos e a manutenção das unidades básicas de saúde exigem coordenação constante. A descentralização do SUS permite que os entes federados tenham papel ativo na implementação das ações, mas também exige capacidade técnica e compromisso político, algo que nem sempre se verifica de forma homogênea no Brasil.
O crescimento do número de inscritos no Mais Médicos também reflete uma compreensão mais madura da medicina como um campo de serviço à comunidade e não apenas de realização pessoal e financeira. A atuação em territórios vulneráveis não é menos nobre ou menos técnica do que o exercício da medicina especializada em centros privados de alta complexidade. Ao contrário: exige competências clínicas amplas, domínio da comunicação em saúde, sensibilidade cultural e resiliência emocional. Trata-se de uma medicina de escuta, de proximidade e de humanidade.
Embora o número de vagas ainda esteja aquém da quantidade de interessados, a força do programa se revela na sua capacidade de articulação entre formação médica, gestão de políticas públicas e compromisso social. A atenção primária, fortalecida por iniciativas como o Mais Médicos, é o único caminho possível para uma saúde pública sustentável, universal e equitativa. E isso só será alcançado com o envolvimento de profissionais conscientes de seu papel transformador.
A reportagem de Daniella Almeida fornece mais do que dados estatísticos; oferece uma visão atualizada e responsável de uma política pública que continua a se reinventar diante das necessidades do Brasil profundo. A marca de 45,7 mil inscritos não deve ser apenas celebrada como um recorde, mas sim interpretada como um sinal de que ainda é possível construir um país onde saúde de qualidade não seja privilégio, mas direito efetivo de cada cidadão, esteja ele onde estiver.
Com informações Agência Brasil